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O Conto “A estrangeira” de Ana Maria Fernandes

A estrangeira

Saí, bati a porta depois de tirar a chave da fechadura. A manhã era de Maio mas o conto não é naturalista ou romântico, pode até não ser mais nada do que:

Palavras para o ar.

As sandálias pretas, a calça amarela solta tipo moda anos 60, uma camisola azul com desenho de duas bonecas grávidas e uma carteira de tecido de várias cores, mas a predominar o azul, toda feita à mão, e, no cabelo, uma fita a segurá-lo e uns óculos de sol.

Bati com o portão da rua depois de olhar para a erva do jardim e para as poucas flores que sobreviviam à chacina do desmazelo.

Comecei a coçar os paralelos no lombo e segui o caminho com um sorriso citadino, o jeito das ancas ondulantes a provocar a natureza que me circundava e o braço direito ligeiramente erguido com as pregas castanhas da mala na mão, a fitinha, também castanha, voava livre como uma jovem virgem.

Na aldeia as flores dos jardins das casas por onde ia passando, olhavam-me de forma diferente das da cidade, libertavam uns odores tradicionais que faziam chegar a infância ao meu horizonte.

Estranha! Tal me começo a sentir com a passagem dos carros locais e que por mim demoraram a desaparecer na recta.

Estava atenta à paisagem do céu onde se via, ao longe. O oxigénio chegou a cair sob a minha pele. Era leve como a água da presa, da qual aproximo a minha sombra.

Deslumbra-me esta natureza destemida.

O destino era ir ao minimercado, que fica no centro da Vila, buscar um raminho de salsa para as iscas de bacalhau — o almoço que ficara programado para aquele dia.

Levantei-me com tempo e arranjei-me devagar, o que acontece raramente, fiz a cama e olhei-a, depois, sem me apetecer lá voltar senão no final do dia, liguei o computador, vi os e-mails, sorri-lhe e ainda brinquei nas extensas escadas para chegar ao último degrau antes de ouvir o eco dos meus passos e dos meus risos pela vivenda quase cheia de vazio.

O sol, encoberto pelas nuvens, além dos vidros da janela do quarto, não se via.

Estava sem carro para me deslocar à Vila, o que podia ser um impedimento de ir e podia remediar sem salsa, afinal só eu é que gostava dela na comida. Porém, a curiosidade de conhecer as manhãs na aldeia era alguma, porque nova era no local.

As casas ornamentadas com lindos jardins, algumas com os quintais ao lado, penteados com regos de cebolo, batata e penca sem um cabelo de ervas que se apontasse por perto; alguns cafés, uma drogaria, talhos, cabeleireiros, um pintor de quadros, um garageiro, um mediador de seguros, perto da padaria, uma sapataria e o minimercado do outro lado da rua para onde me dirigi descontraída e radiosa: dei um bom dia altivo e furei o corredor , algumas senhoras idosas ali agrupadas, perto da caixa registadora; umas, com compras; outras, sem nada, ou melhor: com a cavaqueira toda! Estavam ali, talvez, como em todas as manhãs, a repisarem passagens da vida alheia — como é natural nestas paragens.

Amanhã irão falar de mim, se ainda não for hoje.

Uma delas, que parecia ser a mais velha pelas roupas escuras, incluindo o avental rendado “à lavradora”, a trança branca enrolava-se na nuca, o cabelo dava a sensação que crescia naquele caminho há anos, realçava os seus olhos esbugalhados no rosto carcomido, disse em alta voz: — As mulheres novas conseguem tudo e as velhas nada! — e ficou a olhar para mim quando me voltei na sua direcção, estava muito séria. Baixei o olhar, estava em desvantagem numérica e era uma desconhecida, não me podia arriscar a uma má interpretação, pois há olhares que ferem. Contudo, ainda a desvantagem da carteira e do sotaque, só por si denunciadores do meu “estrangeirismo na terra e força para levantar vozes contra mim.

Peguei na salsa e em alguns legumes que me despertaram a atenção pela sua frescura, e encaminhei-me, devagar, para a caixa.

Entretanto, a mulher mais velha tinha saído do estabelecimento, voltando pouco depois; apercebi-me que iria também a pé e muito carregada, o peso demasiado para os seus braços idosos; por isso, pediu à dona do minimercado uma caixa vazia de fruta, onde depositou os sacos cheios e, depois, meteu a caixa à cabeça e foi-se embora em passo vagaroso e calmo.

Depois deste episódio no supermercado da Vila, fiquei mais pensativa e mais vagarosa, sentia o braço pendurar-se ao corpo com o estorvo da carteira exótica, escondida pelo saco plástico, com os dizeres “A nossa loja”. Atravessei a rua para ir à padaria e acrescentar outro saco ao corpo da cidade — que acabava por tapar completamente o aroma das minhas cores.

Ana Maria Fernandes


Ana Maria Fernandes

Poeta, Artista Visual, Formadora e Curadora de Arte

Contacto: 351 93 930 30 26

https://www.facebook.com/PintoraanamariafernandesAfe

Literatura em Guarulhos-SP: Programa Agentes de Leitura

Visitar recordações, lembranças pessoais e trabalhar com a criação da memória coletiva. Dentre as ações de fomento à leitura desenvolvidas por Danielle Carvalho da Silva Santos, jovem de 22 anos, bolsista do Programa Agentes de Leitura, estão as oficinas realizadas pelo Projeto Girassol, coletivo formado por mulheres em 2018 no bairro Vila Carmela, região de Bonsucesso, onde ela mora com seus pais.

O programa Agentes de Leitura é uma iniciativa da Secretaria Especial de Cultura do Governo Federal, em parceria com a Prefeitura de Guarulhos e a Secretaria de Cultura, que prevê a concessão de bolsas de complementação de renda a jovens com residência fixa no município.

Durante a primeira oficina, realizada no mês passado, Danielle abordou o tema Memórias e utilizou como recurso um varal de poesias. “As participantes deveriam escolher um poema que remetesse à sua história; depois, em voz alta, fazer a leitura e compartilhar o porquê de sua escolha”, explicou a jovem.

Para esse encontro, do qual participaram 10 mulheres, Danielle selecionou os textos O Mal e o Sofrimento, de Leandro Gomes de Barros; Casamento, de Adélia Prado, Simplesmente Sertão, de Leandro Flores, Poema sem nome, de Patativa do Assaré, Brisa, de Manuel Bandeira, Consolo na Praia, de Carlos Drummond de Andrade, e Poemas para saudosistas, de Anna Lara Souza.

Danielle conheceu o Projeto Girassol através de sua mãe, que também frequenta as oficinas oferecidas pelo espaço. Para além da possibilidade de inserir a leitura em um contexto de empoderamento feminino, a jovem observou a iniciativa como uma oportunidade de trabalho com atividades de fomento ao livro, à leitura e à literatura.

“Tem sido incrível, me colocou em contato de pessoas próximas, estamos trocando experiências. Sempre soube que a leitura era importante, mas não sabia que, em meio a um processo de aprendizagem, que ela podia ser verdadeiramente transformadora, pois essas atividades chegam mais rápido às pessoas”.

Fomentando a leitura em mim

Unir sua experiência da leitura com o teatro também tem sido, segundo a jovem, incrível. Danielle está no último semestre do curso de bacharel e licenciatura em Artes Cênicas da Faculdade Anhembi Morumbi.

Ela estudou nas oficinas do Teatro na Comunidade no Centro Municipal de Educação Adamastor e participou de criações bem interessantes que o grupo espalhou pela cidade durante o período de atuação, dentre elas a Mostra Teatro na Comunidade com o espetáculo Mundo Perfeito. É integrante da Cia Unó e atua como auxiliar de direção musical, coreografa e atriz no espetáculo Rubro. Danielle também é professora de Artes da rede estadual.

A jovem conta que decidiu participar do Programa Agentes de Leitura porque sempre quis se dedicar a atividades que pudessem transformar a sociedade.

“Meu intuito com as oficinas do Projeto Girassol é valorizar as histórias e vivências que essas mulheres possuem, entender o quanto elas são fortes e presentes na sociedade, muitas das quais já têm idade avançada, vieram da região nordeste do país, trabalham ou não, outras trabalham em casa, mas não têm esse trabalho reconhecido”.

O sucesso da primeira oficina com as participantes do Projeto Girassol foi tão grande que a segunda oficina, realizada no último dia 29, contou com um número ainda maior de mulheres. Danielle propôs o tema Estima, com um trabalho com a autoimagem, o cuidado, o elogio à outra e a si mesmo, com textos motivacionais e reflexivos ditos umas para as outras.

“Esse trabalho de transformação é diário, em cada atividade que faço, o texto que escolho, tudo causa um impacto nas pessoas que saem do encontro transformadas. Por isso as atividades têm uma característica sensível, para que as mulheres possam olhar para si, e o teatro ajuda nesses momentos de improvisação, as leituras fluidas encontram sentido naquilo que tem sido proposto”.

Projeto Girassol

As oficinas do Projeto Girassol acontecem quinzenalmente, às segundas-feiras, e têm como objetivo oferecer suporte, prestar atendimento e promover encontros sobre temáticas como empoderamento, autoestima e outras demandas do universo feminino.

“O trabalho da Dani no Girassol é muito especial e veio para somar com o projeto. Ela tem muito respeito pelo próximo e grande entusiasmo pelo que faz. O resultado desse trabalho com as meninas é bastante positivo, elas se envolvem com o encontro, com as leituras dos textos, dos poemas, se identificam com as situações, partilham e comentam, tudo acaba sendo uma rica troca de experiências entre todas nós”, conta Mauricélia Ventura da Silva, conhecida como Célia, de 53 anos, uma das idealizadoras do projeto.

Temáticas pertinentes à igualdade feminina, saúde e prevenção de doenças, delegacias especializadas, apoio psicológico, violência psicológica, moral ou sexual, homofobia, família, direitos humanos, direcionamento a outros profissionais quando necessário. Silvana Testa, cofundadora do projeto e psicóloga, conta que a equipe também se dedica a campanhas de arrecadação de alimentos, rodas de conversas, palestras, dinâmicas e aulas de violão.

“O projeto surgiu em parceria com a Célia. Antes de estarmos no nosso espaço, uma das participantes ofereceu sua casa para que as oficinas começassem a acontecer e, desde então, realizamos esses encontros quinzenalmente, sempre às 19h30”, explica Silvana, enfatizando que o grande sonho da equipe é ampliar o atendimento do projeto para outros públicos, além do feminino.

Além de Silvana e Célia, a equipe do projeto também é composta pela social media Nayuri Seyfarth e a psicóloga Camila Santos.

Apontando para o futuro, Danielle acredita que também deveria haver um projeto de cravos, um encontro de homens, que também precisam aprender a ouvir e juntos tentar lidar com um comportamento masculino estrutural, que é passado de geração para geração.

“Às vezes, as mudanças vão acontecer de pouquinho em pouquinho, e eu acho que é exatamente isso que o Projeto Girassol faz. Quando a gente junta essas mulheres e conversa sobre violência doméstica, que elas não podem aceitar essa situação, quando falamos sobre a questão da mulher no mercado de trabalho, ou de depressão, cuidado consigo mesma, isso desperta uma força nessa mulher, e se conseguirmos uma sociedade com mulheres mais fortes, que reconhecem o seu valor, a gente automaticamente incentiva uma sociedade mais igualitária, porque elas deixam de aceitar situações de violência”.

 

Para saber mais sobre o Projeto Girassol, acompanhe suas redes sociais no

Facebook (https://www.facebook.com/Projetogirassolong/) e

Instagram (https://instagram.com/girassol_project?utm_medium=copy_link).

 

Fonte: Portal Educação – Guarulhos

“Uma História”, poema de Casimiro de Abreu

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A brisa dizia à rosa:
– “Dá, formosa,
Dá-me, linda, o teu amor;
Deixa eu dormir no teu seio
Sem receio,
Sem receio minha flor!

Da tarde virei da selva
Sobre a relva
Os meus suspiros te dar;
E de noite na corrente
Mansamente
Mansamente te embalar!” –

E a rosa dizia à brisa:
– “Não precisa
Meu seio dos beijos teus;
Não te adoro… és inconstante…
Outro amante,
Outro amante aos sonhos meus!

Tu passas de noite e dia
Sem poesia
A repetir-me os teus ais;
Não te adoro… quero o Norte
Que é mais forte
Que é mais forte e eu amo mais!” –

No outro dia a pobre rosa
Tão vaidosa
No hastil se debruçou;
Pobre dela! – Teve a morte
Porque o Norte
Porque o Norte a desfolhou!…

 

Saiba quem foi Casimiro de Abreu

Quem foi Casimiro de Abreu

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Casimiro José Marques de Abreu nasceu no dia 4 de janeiro de 1837, em Barra de São João, Rio de Janeiro. Um dos poetas mais importantes da literatura brasileira, pertence a segunda geração do Romantismo no país. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), é patrono da cadeira n.6.

Casimiro de Abreu foi prodígio e muito intenso. Apesar de não ter escrito muito – faleceu com apenas 23 anos de idade – deixou obras perpetuadas na literatura nacional. Dono de um estilo lírico e sentimentos à flor da pele, seus poemas abordavam temas como o amor, a paixão, a melancolia da vida, nostalgia da infância e exaltação à pátria. Autor da obra “Meus Oito Anos”, tornou-se um dos mais populares poetas de sua geração no Brasil, apesar de viver boa parte de sua juventude em Lisboa, Portugal, onde, com apenas 16 anos, escreveu a maior parte dos poemas de seu único livro “Primaveras”.

Na capital portuguesa, Casimiro de Abreu conhece a boemia e se entrega às madrugadas, mulheres e bebidas. Acaba contraindo tuberculose, precisando regressar ao Brasil no ano de 1857. Com a saúde abalada, parte para Indaiassu, perto de Nova Friburgo, onde sua família tinha uma fazenda para que assim pudesse respirar ar mais puro e combater a doença.

Em julho de 1960, fica noivo de Joaquina Alvarenga Silva Peixoto. porém, pouco mais de três meses depois, Casimiro de Abreu não resiste à tuberculose e morre no dia 18 de outubro, em Indaiassu, município que hoje carrega o nome do próprio Casimiro de Abreu, em homenagem.

Texto extraído do site Recanto do Poeta